_ Mas quando é que as aulas vão voltar ao normal?
Do outro lado da linha, uma mãe sem smartphone, mãe de um aluno também sem smartphone, sendo cobrada por uma professora, que foi cobrada pela direção da escola, que foi cobrada pela Diretoria de Ensino, que foi cobrada pela Secretaria Estadual de Educação para que todos os alunos usem um aplicativo a fim de realizar as atividades pedagógicas.
_ Olha, nessa situação está bem difícil; a Senhora sabia que a merendeira da escola morreu de Covid-19?
A informação bateu como uma paulada.
_ Não, eu não sabia, a merendeira morreu?
Ainda podemos falar em dor? Dor pela morte da merendeira, dor por uma política de deixar morrer, dor por saber que o adolescente não tem como acompanhar o que exigem dele. No mês de abril de 2021, a E.E. Jardim Silvia II, em Francisco Morato/SP, perdeu uma de suas merendeiras para a Covid-19, a tal da “gripe fraca”. Maria Aparecida Diógenes da Silva trabalhava muito e ganhava pouco. Sim, ela tinha nome e sobrenome. Aliás, não só ganhava pouco como também morreu sem receber três meses – isso mesmo – três meses de salários atrasados.
Por que trabalhou e não recebeu? Pergunta difícil e ao mesmo tempo fácil. Governabilidade. Ah, que palavra! Agora serve para tudo o que é injustiça. A empresa contratada pelo governo, a licitação, o pagamento, a Secretaria da Educação, a escola, a Diretoria de Ensino. Ninguém tem culpa. Ninguém tem nada. Então, não tem governabilidade para resolver.
Quem já trabalhou em cozinha industrial ou ao menos prestou atenção, deve ter percebido ou conheceu de perto o que é cozinhar em grande escala. Não é fazer um arroz em casa. É lidar com panelas enormes, sofrer queimaduras, arear panelas acabando com as articulações das mãos, dos braços e dos ombros. É a responsabilidade de servir algo extremamente limpo para que ninguém passe mal. É não servir malpassado, nem com pouco nem com muito sal.
Serviço mal pago. Terceirizado. Contrato precário. Direitos trabalhistas mandaram lembranças. Reconhecimento? Ah, mas é só fazer a comida, lavar a louça, limpar o chão e mais nada. Como se isso não fosse o bastante.
Cida. Quantas “Cidas” perdemos até agora para uma política que mata de fome, de doença, de falta de vacina, de falta de hospital, de falta de oxigênio? E quantas ainda vamos perder? Calados ou gritando o grito que deve ser gritado?
Maria Aparecida Diógenes da Silva, a nossa Cida, era um ser humano. Carregava história de vida, sentimentos, emoções, aspirações. Dores e amores. Era humana, como nós. E morreu como estatística. Para o sistema é simples. Coloca outra no lugar para cozinhar. Mas não para nós. Ela não virou estatística. Podemos e devemos nos recusar a aceitar isso.
Maria Aparecida Diógenes da Silva, presente!
“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato.
No alimento se coloca ternura ou ódio.
Na panela se verte tempero ou veneno.
Cozinhar não é serviço.
Cozinhar é um modo de amar os outros.”
(Mia Couto)
*Texto de Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel.
Professora de História na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, autora do livro "Numa tarde de neblina", militante da Apeoesp Franco da Rocha e da Enfrente!